Introdução

O transtorno do espectro autista (TEA) é um transtorno de desenvolvimento, nomeado pela primeira vez em 1943 por Kanner1, caracterizado por déficit na socialização, comunicação e comportamento.

O termo “espectro” adicionado ao nome indica que existem múltiplos subtipos e graus de transtorno, ou seja, enquanto alguns portadores de TEA tem uma vida praticamente normal, outros precisam de um alto nível de apoio dos pais e cuidadores para sobreviverem.

O diagnóstico do transtorno é feito de forma clínica – não há exames que comprovem a existência da patologia – por volta dos três anos de idade, quando os atrasos de desenvolvimento ficam mais evidentes.  Para o diagnóstico, é necessário que a criança apresente alguns sintomas dos listados abaixo2:

  • Atraso no desenvolvimento (falar, andar, etc);
  • Dificuldade de comunicação (verbal e não verbal);
  • Dificuldade de interação (não aparenta vontade em interagir com outros indivíduos);
  • Movimentos motores repetitivos ou estereotipados (andar nas pontas dos pés, movimentar-se para frente e para trás, movimento das mãos, etc);
  • Insistência nas repetições, contagens e agrupamentos;
  • Incapacidade de lidar com ocorrências fora da rotina;
  • Hiper ou hiporreatividade sensorial (sensações aumentadas ou diminuídas relacionadas aos cinco sentidos);
  • Ausência de contato visual.

Embora sua etiologia ainda não seja totalmente definida, acredita-se que a hereditariedade, o uso de medicamentos, a imunização e o próprio meio ambiente (poluição, agrotóxicos, etc) sejam as causas do transtorno.

O que se sabe é que a porcentagem de crianças diagnosticadas com TEA tem aumentado exponencialmente nos últimos anos. Com base no senso de 2020 realizado pelo “Center of Disease Control and Prevention”3 dos Estados Unidos, 1 a cada 54 crianças possui transtorno do espectro autista nem graus mais leves ou severos. A figura 1 exibe a evolução de casos ao longo dos anos.

Figura 1 – Taxa de incidência do autismo ao longo dos anos.

 

No Brasil, embora não exista uma estatística oficial sobre o tema, acredita-se, com base nos sensos escolares, que 1 em cada 20 crianças seja portadora do transtorno do espectro autista.

Infelizmente, o diagnóstico subjetivo e a falta de profissionais especializados em TEA faz com que o transtorno seja visto como uma anormalidade comportamental sem conexão com o corpo ou atividades fisiológicas.

Embora o Transtorno do Espectro Autisma seja um termo da Medicina Ocidental, Qian Yi, médico da dinastia Song (960 – 1127DC) descreve características semelhantes aos sintomas ocidentais na sua Obra “A chave para a Identificação de Padrões essenciais das crianças e tratamento de doenças infantis”.

Nessa obra, ele apresenta o conceito de Wu Chi (Cinco Atrasos) que inclui4 o atraso no levantar, o atraso no engatinhar, o atraso no crescimento dos cabelos, o atraso no crescimento dos dentes e o atraso na fala e na expressão.

Dentro desse conceito, ele descreve a importância de acompanhar o desenvolvimento da criança e agir imediatamente quando alguma anormalidade é detectada. Além disso, descreve as principais causas dos Cinco Atrasos, destacando a deficiência de Jing em casos mais severos e causas externas e internas nos casos mais amenos.

Como é de conhecimento dos profissionais de acupuntura, a essência pré natal ou pré celestial é relacionada à concepção e não há possibilidade de alterá-la ou recuperá-la, sendo o tratamento então focado na melhora da qualidade de vida do paciente.

Já as causas externas e internas envolvem basicamente seis padrões de síndromes5: calor; exaustão ou deficiência de Qi; estagnação de Qi na cabeça; fator patogênico residual (doenças mal curadas); danos cerebrais; .

Antes de iniciar o estudo aprofundado das síndromes, é importante destacar o papel que a alimentação tanto como causa quanto como tratamento para as crianças portadoras de TEA.
Para Scott5, alimentos com alta taxa de açúcar, conservantes, corantes e sabores artificiais, frutas cítricas laranjas e trigo são causadores das síndromes que levam aos comportamentos e atrasos apontados como típicos do portador de TEA e a eliminação completa desses alimentos na dieta infantil, sem a realização de terapias adicionais, geram melhoras significativas nos comportamentos.

A seguir serão analisados cada um dos padrões típicos no Transtorno do Espectro Autista.

Calor

O padrão de calor interno é caracterizado por sinais e sintomas como calor constante, suor excessivo, vermelhidão facial, sede excessiva, dificuldade para dormir e sono leve e agitado, inquietação, agitação, irritabilidade, língua vermelha e pulso rápido.

O excesso de calor no sistema nervoso é muito significante para o autismo, uma vez que os órgãos do sentido se tornam hipersensíveis, ou seja, o som se torna muito alto, os estímulos visuais muito brilhantes, os sabores muito potentes e os cheiros muito fortes5, o que explica a existência das crises sensoriais que ocorrem rotineiramente nos portadores de TEA.

Como causas, é possível destacar a alimentação, imunizações e questões emocionais.

Exaustão ou deficiência de Qi

A exaustão ou deficiência de Qi é caracterizada por sinais e sintomas como falta de apetite, seleção alimentar extrema, propensão à doenças, musculatura flácida, cansaço frequente, face pálida, língua pálida e pulso fraco.

As circunstâncias típicas que levam a esse padrão incluem dificuldades no parto, falta de sono devido à cólica ou outros desconfortos nos primeiros meses de vida e excesso de medicamentos5.

Estagnação de Qi na cabeça

É na cabeça que todos os canais Yang se encontram. Por isso, um bloqueio ou estagnação de Qi nessa região faz com que o Qi não circule na região corretamente ou que não consiga circular pelo restante do corpo.

Em casos assim, é comum que a criança sinta desconfortos e dores de cabeça e por isso chore aparentemente “sem motivo”, principalmente no momento exato em que começa a dormir profundamente. Nesse caso, balanceios rápidos e que movem a cabeça da criança com vigor permitem que ela relaxe e se acalme.

Além disso, como o Qi não consegue circular pelo restante do corpo, sintomas associados ao aquecedor médio, como indigestão, dores abdominais e cólicas persistentes são comuns, principalmente em crianças maiores.

Na inspeção é possível observar uma mancha azulada na região do Shan Gen (acima do nariz) e ao redor da boca. O pulso é forte e escorregadio na segunda posição.

As causas da estagnação do Qi na região da cabeça têm como causas principais o parto prolongado, doloroso ou induzido e traumas.

Fator patogênico residual (doenças mal curadas)

Em algumas situações, o fator patogênico é completamente expulso do corpo e permanece latente, aguardando uma oportunidade para reestabelecer seu “ataque”. É por isso que muitas crianças têm doenças recorrentes, principalmente às associadas ao sistema respiratório.

As vezes, o fator patogênico residual nunca se expressa como a doença inicial, mas causa desarmonias internas que geram problemas secundários, comumente associados à fleuma ou mucosidade.

Dentro do contexto do TEA, um dos padrões que afetam o comportamento de maneira geral é o bloqueio dos canais por mucosidade, principalmente o canal do Coração e também nos canais localizados na cabeça.

Com isso, o indivíduo pode apresentar dificuldades de expressão, principalmente relacionadas à fala e também em relação ao pensamento, expressões e sentimentos. Como o Coração é a morada do Shen, essa situação também faz com que a pessoa tenha dificuldade em permanecer no mundo real, ou seja, fica divagando.

Além dos sintomas relacionados ao comportamento, também podem ser encontrados sintomas como tendência a tosse seca, muco no peito, linfonodos inchados, intolerância alimentar, perda súbita de energia, dor abdominal intermitente, eczema e doenças de pele. Na inspeção é possível observar manchas brancas nas bochechas e possivelmente pulso fraco ou escorregadio.

 

Danos cerebrais

Além das desarmonias e padrões, é necessário considerar as causas físicas, muitas vezes causadas por lesões durante o parto (afundamento da fontanela, entre outros) ou durante a primeira infância.

Embora as diversas áreas do cérebro e suas funções sejam amplamente conhecidas, lesões em determinadas áreas podem causas alterações nas funções de áreas distintas5.

Nestes casos é necessário avaliar a lesão e atuar sobre ela, principalmente através da craniopuntura, ou outras técnicas.

 

Além desses padrões, é necessário observar causas emocionais, como o medo.

Associado ao rim, o medo crônico presente nos portadores do espectro autista tem relação direta com a deficiência de essência ou com traumas vividos nos primeiros meses de vida, na gestação, no parto ou até medos sem motivo. Segundo Scott5, é necessário tratar o medo e as questões emocionais antes do tratamento da mucosidade, uma vez que esta pode ser um filtro para as expressões do medo.

Os portadores do transtorno do espectro autista tem uma ligação muito direta com rotina e têm medo profundo de qualquer alteração ou qualquer situação desconhecida. É por esse motivo que preferem sempre repetir os mesmos comportamentos e movimentos e manter tudo numa ordem perfeita.

 

Tratamentos

A Medicina Chinesa tem papel importante no tratamento dos sintomas associados ao autismo. O tipo de tratamento – acupuntura, tuiná, microssistemas, acupressão, guachá, fitoterapia, laser, etc – depende basicamente da aceitação da criança.

Já existem diversos estudos científicos que indicam a eficácia da Medicina Chinesa no tratamento, chegando à 82,2% na melhora nos testes de avaliação de interação social e cognitiva, contra 55,6% com o uso do tratamento convencional6.

Entre os diversos estudos, há aqueles que utilizam acupuntura sistêmica, laserpuntura, craniopuntura, tuiná, fitoterapia e outras técnicas da Medicina Chinesa, todos eles indicando melhora significativa no quadro geral dos pacientes quando comparado o uso da Medicina Chinesa com técnicas convencionais (normalmente uso de medicação, terapia e acompanhamento psicopedagógico) ou comparando o uso da Medicina Chinesa associada às técnicas convencionais com o uso exclusivo dessas técnicas.

Uma publicação que merece destaque é a “Acupuncture for treatment of Autism Spectrum Disorders”6, um artigo de revisão que analisou diversos estudos sobre o tema. Na conclusão, os autores afirmam que “todos os estudos analisaram indicaram melhora expressiva no grupo de crianças que receberam alguma forma de acupuntura, que os testes clínicos indicaram que a acupuntura tem efeito superior em comparação com as técnicas convencionais de tratamento e que todos os estudos indicaram alta tolerância à acupuntura e outras técnicas, incluindo as crianças com grau severo de autismo com sintomas comportamentais graves”.

Conclusão

Ainda há muito para entender sobre o transtorno do espectro autista e suas diversas nuances mas é fato que a Medicina Chinesa pode contribuir tanto para resolver os sintomas iniciais relacionados ao atraso no desenvolvimento quanto nos transtornos de comportamento e também para o tratamento de pacientes diagnosticados com o TEA.

É necessário que mais pesquisas sejam realizadas e a divulgação dos seus resultados seja amplificada para os pais, educadores e profissionais envolvidos no diagnóstico e tratamento.

Referências

  1. Frith, U. Autism: Explain the enigma. 2 edição. Oxford: Basil Blackwell, 2003.
  2. CENTER OF DISEASE CONTROL AND TREATMENTS. Autism Spectrum Disorder. Disponível em https://www.cdc.gov/ncbddd/autism. Acesso em 19/04/21.
  3. CENTER OF DISEASE CONTROL AND TREATMENTS. Autism Spectrum Disorder. Disponível em https://www.cdc.gov/ncbddd/autism. Acesso em 19/04/21.
  4. QIAN YI. Concise Guide to Medicinal Aplication in Pediatrics – Translation of Xiao Er Yao Zheng Zhi Jue. New Work: World Scientific, 2019.
  5. SCOTT, JULIAN. Autism and Acupuncture. Bloomfield: Portway Press, 2017.
  6. Ming X, Chen X, Wang XT, et al. Acupuncture for treatment of autism spectrum disorders. Evid Based Complement Alternat Med 2012; 2012:679845.
  7. Li N, Li JL, Liu ZH, et al. Clinical observation on acupuncture at thirteen ghost acupoints for children with autism spectrum disorder. J Acupunct Tuina Sci, 2017, 15(5): 344-348 DOI: 10.1007/s11726-017-1025-8

 

Publicado em: Revista Brasileira de Medicina Chinesa 33ª Edição (https://ebramec.edu.br/revista/revista-brasileira-de-medicina-chinesa-33a-edicao)